As palavras calmas do psicólogo morreram na
minha mente. Eu vagueava por cima das nossas cabeças, como que apoiada no tecto
do gabinete limpo e organizado do homem.
Ao meu lado, a minha mãe tremia ansiosamente,
bebendo cada palavra do psicólogo como se este tivesse o dom de prever o
futuro.
Naquele momento, eu só pensava em coisas
mórbidas. Prédios de altos andares, quedas, vidros espatifados, sangue… muito
sangue…
Meses antes, teria tremido de nojo ao
imaginar tais cenas. Agora não. Agora até parecem cenas do dia-a-dia. E até têm
a sua graça. Quem diria que a tonta, ingénua e alegre Madalena Sampaio
conseguia ter tão forte humor negro? A mesma menina que brincava com contas e
bonecas de porcelana e que se ria das partidas que os rapazes pregavam à minha
grande amiga Sara, a maria-rapaz da escola. Se me tivessem perguntado meses
antes, a resposta seria óbvia. Agora, ainda consigo surpreender a pessoa mais
céptica.
A minha professora já não reclama de eu não
fazer os trabalhos de casa ou de chegar atrasada. Em vez disso, manda-me um
olhar de pena, como se tivesse sido eu a atirar-me do prédio abaixo. Como se
tivesse sido eu a morrer…
A minha mãe mandou-me fechar as cortinas do
quarto. Ainda que eu dormisse no primeiro andar e, se saltasse, a queda mal me
aleijaria, ela teme que eu tenha ideias. Como se isso fosse possível. Tinha
coisas mais importantes em que pensar, em vez de tentar por fim à minha própria
vida.
Porque é que ela o fez? O nosso mundo sempre
fora alegre, amarelo. E com tons de rosa. Conheci-a desde criança, sabia tudo
sobre ela. Já dormi tantas vezes na casa dela, que até tinha lá uma cama extra,
pronta para me receber. E era o mesmo na minha casa.
E, naquele dia, tinha ido lá dormir. Faláramos
do teste de inglês, ao qual voltei a chumbar, rapazes, uma pulseira que a mãe
lhe tinha dado, comida… enfim, coisas de pré-adolescentes. Fui à casa de banho.
Quando voltei, ela saltou. Era como se ela tivesse esperado pelo momento em que
eu sairia da casa de banho e olhasse para ela nos olhos e visse o medo, a
vergonha, a tristeza, a despedida…
Para mim, não fazia sentido que Sara risse
despreocupadamente num momento e no noutro saltasse da sua própria varanda. Não
tinha qualquer sentido. Talvez ela me
mentira. Talvez cada risada dela escondia uma nuvem negra nos olhos ou nas suas
expressões. Uma nuvem que eu, sendo tão ingénua e estúpida, não me apercebi.
-Madalena? – Ouvi a minha mãe chamar. Eu
virei-me para ela, tentando não mostrar a minha distracção. Mas o canalha do
psicólogo tinha-se apercebido e sorrira-me calorosamente. Apeteceu-me
atirar-lhe com o pisa-papéis à cabeça por me oferecer aquele sorriso, tão cheio
de pena e compreensão. Mas ele não compreendia. Eu tinha visto a minha melhor
amiga suicidar-se! As coisas nunca mais seriam as mesmas, por muito que ele dissesse
o contrário. Porque eu tinha mudado.
E pior, nem me tinha apercebido da mudança
até agora. Já não consigo sorrir como antigamente. Algo dentro de mim mudou. O
rosa desapareceu.
E, com o tempo, também desaparecia o amarelo…
A minha mãe perguntou-me o que eu queria para
jantar. Eu encolhi os ombros, sem responder. Ela mordeu o lábio e, olhando em
meu redor, entrou no supermercado apressadamente. Eu fiquei cá fora, admirando
o muro da rua oposta. Lá, postava um gato malhado com uma pequena ferida na
pata. Parecia confuso. Pois bem, eu também estava confusa. Por muito estúpida
que seja, eu conseguiria saber se a Sara tinha problemas. Eu saberia se ela
tinha algum motivo para pôr termo à vida. Mas não havia nada. Tudo corria bem. Era
o nosso mundo amarelo e cor-de-rosa.
Ela chorara antes de saltar. E sussurrara uma
única palavra antes de a gravidade a levar para longe de nós, para nunca mais a
vermos. Até hoje, ainda não conseguia compreender o significado.
Ajuda-me.
Não contei nada disto à polícia. Fingi-me
chocada, mas a verdade era que o choque tinha-se ido quando ouvira o choque de
um corpo no carro estacionado à porta. Eu apoiara-me na varanda, vendo o corpo
da minha amiga sendo encontrado pelo porteiro e pelo dono do carro, que chamou
uma ambulância. Eu permanecia imóvel, a pensar naquilo que vira e naquilo que ela
dissera. Não estava em mim naquela noite. Nem nunca mais estarei.
O psicólogo havia dito que, com a depressão,
corra risco em sofrer um transtorno obsessivo-compulsivo. Ele estava errado. Já
tinha este transtorno. Sempre que via sangue, lembrava-me da Sara e na ausência
de choque. Só sentia dor. E eu tornei-me algo semelhante a masoquista. Quis-me
agarrar à última memória que tinha de Sara, realizando ações que assustaram os
meus pais e familiares. Até o meu irmão mais velho, Francisco, tremia sempre
que me via a olhar para uma faca de serra.
O problema estava… é que eles não me
entendem. Querem-me curar. Mas não o podem fazer. Algo matou Sara. Algo forçou
a minha melhor amiga a saltar da varanda. Algo que me queria atingir.
E conseguiu. O amarelo foi-se.
Ficou tudo preto.
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