quinta-feira, 19 de julho de 2012

Tempestades & Marshmallows




"O tempo estava deprimido. As nuvens ameaçavam romper os céus de chuva grossa e até mesmo de granizo. O vento soprava fortemente contra os objetos no seu caminho, o seu som ecoando como o sopro de uma garrafa. O céu estava cinzento e tristonho, tal como a menina junto à janela, que pensava no seu pequeno dilema. Joana Salgueiro, mais conhecida como Joaninha, tinha um pedido a fazer. Uma prenda de aniversário atrasada. E, para tal, precisava de falar com os pais acerca disso. A sua sábia madrinha, Cristina, aconselhara falar com a sua mãe em dias maus, quando Laura Salgueiro bebia chocolate quente. Aí, ela ficava de bom humor e era a altura perfeita para falar com ela. Claro que Cristina ignorava que nem depois de todas as tempestades vinham bonanças. Afinal, os pais da pequena eram pessoas erróneas, por baixo da camada de verniz que os transpareciam como gente perfeita.
Estava sentada com as pernas cruzadas junto à varanda, fitando o exterior com profundo aborrecimento e tristeza. Suspirou, como um cachorrinho abandonado. Os seus grandes olhos verdes fitaram por cima do ombro a porta do escritório, onde a sua mãe se encerrara desde o meio-dia. Pensou no seu pai, que estava na sua empresa de engenhos eletrónicos - pelo que ela podia entender em tão tenra idade - trabalhando. Em vez de estar ali, com as duas. Talvez fosse por isso que a sua mãe estivesse completamente em baixo. Era suposto passarem o dia juntos, os três em família e agora um dos membros não estava presente.
A porta do escritório abriu-se e de lá saiu uma mulher loira. A sua mãe era bem conhecida pela sua imagem de mulher fina, com cabelo delicado, rosto de boneca e roupas da última moda. Mas, naquele dia, aparentava a mais comum das mulheres, os cabelos presos, cara isente de maquilhagem e usando roupas velhas.
A sua mãe passou a sala até à cozinha, sem dar conta da presença da filha, que a observava atentamente. Já na outra divisão, preparou uma bebida.
Joaninha levantou-se e aproximou-se da mãe com cautela, pensando naquilo que Cristina lhe contara. Viu que a mãe preparara o seu chocolate quente com costumava fazer e que tirara um saco com gomas brancas do armário. Ao ver a filha, não escondeu a surpresa:
-Querida… - Não sabendo o que dizer e não querendo manter o silêncio, Laura olhou para a sua caneca. – Queres um pouco?
Joaninha assentiu, pegando na caneca quente da mãe. Esta pegou num molhe de gomas brancas.
-Marshmallows? – Perguntou, exibindo um sorriso cansado. O rosto belo tentava esconder mágoa e a falta de sono, com insucesso. A pequena fez um olhar inquisitório.
-O que é isso? – Perguntou, com a sua vozinha de criança.
-Uma coisa que a Maria gosta muito. – Joaninha notou numa certa hesitação ao mencionar a irmã mais velha. Joaninha sabia que faziam anos desde que as duas se falavam. Tudo porque os maridos de ambas haviam-se pegado por assuntos que Joaninha ainda não tinha conhecimento, sendo muito nova para tal.
A pequena assentiu silenciosamente e deu um gole na bebida quente, observando a goma a afogar-se no mar castanho. Soube-lhe bem, o cacau bem forte e com um sabor doce excelente. Pelo menos para duas gulosas como elas as duas. Pensou por um bocadinho em silêncio, ansiando pelo momento certo para fazer o seu pedido à mãe. Laura preparou outro chocolate quente e mergulhou dois marshmallows na sua caneca.
Laura não disse nada durante muito tempo, perdida em pensamentos. Esquecera-se que a filha estava na mesma divisão que ela e que a observava atentamente.
Porém, paciência não era qualidade da senhorita Joaninha Adriana Salgueiro, que mordeu o lábio de tanto tempo esperar. Sem se aperceber, atirou logo o seu pedido à mãe, sem aviso prévio:
-Quero um mano. – Disse, o tom um pouco mandão.
 Laura não esperava que a filha falasse de repente e muito menos que dissesse aquelas palavras. Sobressaltada, deixou cair a caneca, o chocolate quente espalhando-se pelo chão de mármore branco e os dois solitários marshmallows jazidos ali no meio.
-O quê?
-Queria um irmãozinho. Ou uma irmãzinha. Para brincar comigo. – Respondeu a pequena, com seu ar inocente.
Joaninha estudou a cara da mãe, vendo as suas reações. Laura mostrara-se surpreendida com o pedido, mas havia algo mais mal camuflado naquelas expressões. Raiva.
Porquê, ela não sabia. Nunca soube, pois naquele momento o seu pai entrara em casa, arrastando pelo braço uma pasta de veludo preta. Pousou a gabardina no cabide e a pasta no chão. Joaninha ia ter com o pai para dar-lhe um abraço, porém a mãe travou-a, os seus olhos verdes sem qualquer brilho. Quando Pedro Salgueiro viu a filha, aproximou-se para a abraçar, até que reparou na esposa, atrás da menina. Joaninha não se atreveu a olhar para a mãe e descobrir que mensagem misteriosa eles passavam um ao outro. Tudo o que sabia fora que a mãe a mandara rispidamente para cima e, poucos minutos depois, podiam ouvir-se vozes exaltadas vindas da sala.
Ela chorou no seu travesseiro, temendo ser a culpada da zanga dos pais. Mas ela não adivinhava que o casal já tinha problemas fazia muito tempo e ela era a última culpada naquele problema gigante, que se alastrara como uma bola de neve.
No dia seguinte, encontrou a mãe na cozinha a comer os malditos marshmallows, os olhos vermelhos e a pele completamente pálida. Murmurava para si própria, como se tivesse uma conversa imaginária com alguém. Do pai, não havia sinal. A sua gabardina e a mala tinham desaparecido.
Laura olhou para a filha, e os seus olhos voltaram a ficar húmidos. Num segundo, abraçava a filha com todas as suas forças, como se a sua vida dependesse disso. E a pequena inocente fitou os marshmallows. Talvez tivesse sido aquilo que tivesse estragado tudo o que deveria correr bem. Mas, em qualquer dos casos, não devia ter prestado atenção ao que Cristina dizia. Sabia lá ela o que era viver com os seus pais."


BY: Ana Santos

domingo, 8 de julho de 2012

Filhas Perfeitas


      “Vou-me embora, mãe. Não pertenço aqui!”, disse-me ela um dia. Estava no quarto a preparar uma gigantesca mala de viagem quando eu entrei e perguntei-lhe o que estava a fazer. Os seus olhos azuis, ainda que traíssem alguma tristeza, brilhavam de extrema determinação. E essa determinação era aquilo que definia a minha filha mais nova, Luísa. E quando me deparava com aquela menina determinada, sentia uma parede a erguer-se, a separá-la de mim. E sentia-me um fracasso para com ela. Nunca adivinhara porque é que ela era tão determinada, ambiciosa e solitária. Aurora havia-me dito que ela não tinha uma boa relação com as filhas das minhas amigas, e eu nunca acreditei. Só agora me apercebia do quanto cega fora naquela altura, não vendo a minha menina afastada daquelas raparigas, tão sozinha, preparando o seu momento de fuga para a liberdade desde os seis anos.
      A minha mais velha estava casada e prestes a dar-me um neto. E a minha mais nova abria as suas asas para terras longínquas, para longe de mim. Sempre que pensava nisso, uma dor me afligia. E lembrava-me que eu era uma má mãe. Uma má mãe que criara filhas perfeitas.
      - Srª. Carvalho? – Alguém chamou-me. Todavia, eu não tirava os olhos da janela, onde via a minha mais nova a correr para o carro com a mala a arrastar pelo caminho. A irmã corria atrás, o máximo que podia com a sua tão avançada gravidez. E o meu coração deu um salto. Ela ia-se embora sem se despedir. Talvez se eu fosse atrás delas…
      - Srª. Carvalho? – Voltaram a chamar-me. E, desta vez, não as pude ignorar. Os seus rostos estavam demasiado sérios. Era uma reunião informal na minha casa de verão, onde eu deveria passar duas semanas com a minha família antes que o meu neto nascesse. Faziam quase dez anos desde que entrara na política e, desde aí, fora sempre a subir. Hoje, era imprescindível para o meu partido. Tinha aquilo que sempre sonhara desde que terminara os estudos. Tinha um cargo importante no Governo.
      Demasiado importante, pensei para mim própria ao ver Luísa a afastar-se. Tantos erros eu cometi no passado à custa do meu emprego e agora a única regalia daquele trabalho escapava-me das mãos como fumo.
      Notei vagamente que a minha grande amiga Sílvia não estava presente, ainda que eu lhe tivesse pedido pois não queria mergulhar em trabalho em plenas férias. E eu sabia porquê. Renata, a filha de Sílvia, era a rapariga mais insuportável que eu alguma vez vira. Era mimada, fútil, temperamental e tão manipuladora que até conseguiu fazer com a filha de uma outra amiga minha – inocente em idade jovem - se virasse para maus caminhos. Sílvia não tinha mãos a medir com aquela rapariga. E, naquele dia, a jovem havia plantado mais alguma semente maligna. Tão má que a mãe não estava presente num encontro importante do qual eu me queria ver livre. Tão importante que eu dava por mim a ver as minhas filhas a afastarem-se….
      Eles haviam continuado a conversa sem mim. E eu não podia importar-me menos com aquilo que discutiam. A economia do país era um problema de segundo plano naquele momento. Engoli em seco e dei um passo para trás, disposta a sair da sala e correr para juntos das minhas filhas.
      Todavia, a voz da minha secretária travou-me.
      - O secretário do Sr. Ministro da Economia mandou-me estes faxes com as assinaturas dos membros da assembleia. – Informou a jovem, perante os olhares sérios e um pouco aborrecidos que recebia, o meu incluído. 
      - Assim tão depressa? – Perguntou um dos homens, lentamente. A conversa não iria terminar ali. Eu retomei a minha atenção na janela, vendo Luísa a falar com a irmã, e o meu marido Jorge a aproximar-se delas. A conversa fora breve e eu soube que voltara a falhar quando vi o meu marido abraçar as nossas filhas lavadas em lágrimas e a entrar no carro, disposto a levar a nossa mais nova ao aeroporto. Aurora também entrou, antes de dirigir umas palavras para alguém que se encontrava a uns metros dela. Provavelmente o marido. Antes de o carro arrancar e partir, pude sentir os olhos de Luísa em mim, como se ela soubesse que eu a observava a partir da janela. Uma dolorosa mágoa perpétua trespassou as minhas entranhas.
      E, de certa forma, ao olhar para o lugar onde o carro de Luísa estivera estacionado, soube que tinha falhado. 
      Era tarde de mais.
      Falhei e assim perdi as minhas filhas perfeitas.
      Renata estava grávida, com apenas dezoito anos. E não sabia quem era o pai. Sílvia desabafava os problemas que tinha com a filha e as nossas amigas concordavam, transparecendo os seus próprios problemas e, por vezes, até desejando regressar atrás no tempo. Todavia, sempre que eu entrava, elas calavam-se de imediato, lançando-me olhares de pena e consolação. Porque elas sabiam aquilo que eu sabia. Estávamos em eleições e eu despedira-me. Arruinei a minha carreira quando a minha esperança de felicidade morrera num acidente de carro. Elas sabiam que as minhas filhas eram o folego do meu viver, o motivo por que eu era tão forte e determinada, tal como Luísa. E Aurora, tão esperta e sensata. As minhas filhas…
      Filhas perfeitas que falhei, ainda que as minhas amigas me dissessem o contrário. Por vezes, eu sentia que nunca falhara como mãe. Que, em comparação com as filhas delas, as minhas tornaram-se perfeitas por meu mérito. Mas eu sabia que o mérito ou era do pai, ou era delas próprias.
      Não tinha problemas com isso. Elas eram perfeitas. Filhas perfeitas que eu perdi. Se ao menos eu tivesse ido atrás delas…
      O meu genro brincava com a minha neta no jardim, os seus olhos traindo o sorriso luminoso que mostrava. Porque ele iria criar aquela menina sozinho. Aquela menina que era muito mais do que uma neta para mim. Era a escolha da minha filha. A vida de Aurora pela da sua filha. E eu não esperaria outra escolha da minha filha perfeita mais velha.
      Ao meu lado, o meu marido suspirou, enquanto observava os dois, o seu olhar perdido no horizonte. Os mesmos olhos determinados de Luísa, agora mortos e derrotados. As mãos dele seguravam a cadeira de rodas com uma força raivosa e eu sabia o que ele pensava. Que ele deveria ter morrido em vez delas. Antes isso do que as nossas filhas sem sopro e ele inválido.
      Sentei-me no colo dele e beijei-o suavemente, não querendo alastrar aqueles pensamentos obscuros, não querendo que aquela culpa de sobrevivente o tirasse de mim. Porque a culpada era eu. Deus dera-me algo poderoso e eu falhei, deixando-me apenas aquela atroz dor perpétua no peito. Tive duas filhas perfeitas mas deixei-as ir.
      Se ao menos eu tivesse ido atrás delas…

BY: Ana Santos